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O que é um documentário?

quarta-feira, novembro 15, 2006

O ano em que meus pais saíram em férias

Mais tempero ajudaria



Não sei o que é, mas falta algo ao filme de Cao Hamburger. Não sei se é intensidade ao roteiro, ou maior atuação dos atores. O caso é que com um argumento tão salutar, a visão de um garoto sobre o sumiço de seus pais - em decorrência da ditadura militar - meses antes da Copa do Mundo de 1970 e sua estadia no bairro eclético em etnia e costumes do Bom Retiro, o filme não engrena. Houve quem aplaudisse o filme como já se convencionou fazer quando a película ultrapassa as expectativas. Mas este não me parece o caso. Talvez tenha sido necessário um corte, exigência da distribuídora para que o filme se tornasse atrativo comercialmente. É lógico que o filme tem suas delicadezas, mas esta longe de provocar fortes emoções, embora disponha de todos os elementos.
Lembrando de Copa... deixo registrado na Comuna um conto sobre o assunto .


Romaria


Esse conto foi apresentado no Concurso do Estadão, em função da Copa do Mundo 2006, e - como tantos outros - não foi selecionado. Mas como gosto dele o coloco aqui neste blog. Numa autocrítica pública é possível dizer que um dos seus problemas fundamentais é ter cara de crônica e não de conto. Mas em vista dos selecionados e dos critérios: não o deixo de achar simpático.

Esse não é um conto sobre procissão ou religiosidade, até porque nosso personagem prefere mesmo passeatas. Trata-se da história de alguém fecundado na noite da conquista do Tri. Um tal de Emanuel, nascido, sem pena de acontecimentos antecipatórios, nove meses depois. E que só conheceu esse negócio de futebol, de assistir mesmo e torcer, onze anos depois. Era a tal da nova esperança, mas Emanuel nem sabia daquilo. Reunia-se com a turma; fazia vaquinha, pedindo dinheiro aos pais, para a cal e o tubinho de tinta da marca Xadrez. A briga era certa: quem desenharia? Quem faria o contorno do desenho? Quem pintaria o miolo do desenho? O tal do Naranjito – símbolo espanhol daquele campeonato – ao final da disputa pela “pintoria” parecia mesmo um abacaxi. Não importava. Divididos pelas casas, pois, certamente nenhum pai ou mãe suportaria aquela profusão de hormônios liberados a cada jogada, aqueles jovens, incluindo Emanuel, encontravam-se sempre após o final dos jogos para narrar as melhores cenas, os roubos do juiz, as entradas e pernadas e estas coisas com pouco sentido que se comentam depois dos jogos.


Emanuel adorava Chulapa. O tipo maloqueiro “classudo” que ele nem sabia qual posição ocupava e, por isso mesmo, sempre apostava sacos de milho de pipoca por um gol do craque, que nunca vinha. Mas Emanuel nem se importava; afinal, também comeu daqueles grãos estourados em panelas velhas, às vezes, mesmo engorduradas.


Segundo dizem, hoje, Emanuel não confirma muita coisa daquele tempo. Diz que se esqueceu, inclusive das passeatas que organizava uma hora antes de cada jogo pelo bairro para animar os torcedores e “capturar” umas balas e chicletes, mas amigos próximos dizem que não, que o aparente esquecimento é só uma forma de esconder a tristeza. Até hoje não gosta de ver imagens - nas palavras dele - daquele jogo maldito, que foi a peleja entre uma seleção esplêndida e aquele jogo de várzea (com perdão aos jogadores de várzeas, de lá saíram tantos craques, e também muita piada melhor ainda). Mas Emanuel não esconde uma coisa: quando já depois de adulto começou a ouvir o termo stress teve certeza de que fora um pré-adolescente estressadíssimo depois daquele campeonato e que o tormento o persegue.


Emanuel cresceu um pouco mais e já adolescente com os primeiros pêlos no rosto começou a pensar que já pensava por si mesmo. O que vem a seguir foi retirado de seu diário. Páginas inéditas roubadas por seus amigos que o feriram na alma, como se dizia ainda no tempo daquela adolescência, dizendo que diário era coisa de menininha, viadinho. Bom essa conversa qualquer leitor que se preze conhece.


“Hoje até rezei para o Brasil ganhar e começar bem esta copa. Será que viverei toda a vida sem ver a minha seleção erguer uma taça? Não é possível. Se somos os melhores por que, então, não há justiça, cacete?! Fiz uma promessa que vou estudar mais Química caso o Brasil se saia bem nesta primeira fase”.


“Fazem dez dias que escrevi as linhas anteriores e vou reforçá meu pedido. Quero que o Brasil se saia bem nesta primeira fase, mas poderíamos fazer mais gols. Um a zero é de cortar o coração. Parece que não existe nenhum som na face da terra antes do nosso chute varar aquelas traves”.


Emanuel era leal a suas promessas e poderia ter incorporado junto com a Química o esmero maior também no Português. Mas isto não importa. Seguindo as páginas do diário, a confiança aumenta depois do jogo contra a Irlanda do Norte. Novamente, os amigos de Emanuel, os que sobraram, uma parte já havia se mudado, resolveram pintar novamente a rua, até mesmo para cobrir aquelas pinturas do campeonato de 1982.


Como agora alguns já trabalhavam, a graninha era maior e compraram até um fixador para colaborar com a produção da cal e da tinta de tubinho. Ah! também se lembraram de comprar uma balde vagabundo para não deixar nenhuma mãe brava como da última vez. O pessoal que desenhava, de acordo com as poucas linhas reservadas a esta questão no diário, também já tinha melhorado, inclusive as disputas não eram as mesmas. “Ninguém mais briga tanto para desenhar, contornar e pintar. Tem gente que não quer mais sujar as mãos (nem as roupas), principalmente, as meninas”.


“O jogo com a Polônia foi bacana, mas como foi mais ou menos fácil, sem contar o primeiro gol que demorou a sair, não tenho ele como uma grande vitória. Até aqui ninguém tinha comentado sobre a Polônia. Nem aquele pessoal velho mesmo! Nunca ouvi ninguém falar sobre esta seleção; conclusão: não deve ser lá essas coisas. Vamos aguardar o jogo contra a França”.


“MERDA. MERDA. MERDA DE MUNDO. NÃO VOU ESCREVER MAIS NESTA MERDA. O MUNDO É UMA MERDA E O FUTEBOL NÃO ME DÁ NENHUMA ALEGRIA”. Esta foi a última página escrita logo após o jogo contra a Itália. O nome da seleção do Platini nem apareceu!!!. E o diário, depois deste desabafo, perdeu o sentido da existência.


Em 1990, Emanuel estava cursando o primeiro ano de Arquitetura numa faculdade privada, porque o ensino já naquela época estava ficando complicado para alunos e professores; baixos salários, superlotação de salas. Emanuel não culpa os professores nem a si mesmo. Na verdade, segundo os amigos que reencontrou, ele estava muito feliz e tinha feito as pazes com o futebol (fazia maquetes de estádios em suas horas vagas) e estava disposto a manter-se fiel torcedor (fiel no sentido de fidelidade e não no sentido utilizado pelo torcedor do Corinthians que pode parecer o mesmo, mas não é – Emanuel sempre advertia. Emanuel era são-paulino! Mas também gostava do Palmeiras). Antecipou-se e no final de maio já tinha doado um dinheirinho à “nova geração de pintores de ruas em época de copa”. Colaborou, junto com os outros, organizando a pirralhada para que não sofressem como eles haviam sofrido (Ninguém mais falou sobre o diário; ele já tinha sido roubado, mas o desinteresse de Emanuel era tão grande que ele nem percebeu). Emanuel havia se convencido que o pintar a rua depois do começo da copa, como ocorrera tanto em 1982 quanto em 1986 - quando as ruas foram pintadas dois jogos antes do Brasil perder, como os leitores devem se recordar -, trazia muito azar. Então, dessa vez estava tudo certo.


No meio do jogo contra a Argentina, na hora do intervalo, enquanto todos conversavam sobre as possibilidades, Emanuel preparava, calado, um poderoso composto de tintas num balde bem bacana que havia comprado para a garotada. Só alguns amigos perguntaram sobre o que se tratava, e o futuro arquiteto desconversou.


Quando aquele diabo louro, falso, teatral, araponga, marcou o gol e todo o Brasil se calou de tristeza e ódio, Emanuel correu até o fundo da casa, apanhou o balde, correu até a rua e despejou o composto sobre todos os desenhos para completo espanto e terror da pivetada. Xingou um pouco os que o reprimiram e foi para sua casa. De lá para cá, dizem que Emanuel começou a torcer contra o Brasil. E tem dado certo, apesar do fiasco de 1994 (Copa ganha com pênalti!) e de a torcida contra não ter sido tão boa em 1998, por isso o segundo lugar, torcer contra valeu muito em 2002. Dizem que este ano, já há uma bandeira da Croácia na sacada do prédio onde mora. Apesar da possibilidade de pagar uma multa, (pendurar coisas na sacada é multa grave nas regras do condomínio), Emanuel acredita que esta romaria valha a pena. (Para quem pensou que Romaria fosse fazer trocadilho com Romário, esqueça, Emanuel acha Romário muito chato e meio folgado. Emanuel gosta é de torcer, mesmo que seja contra! Esta é sua romaria, segundo sua agenda do ano passado, que também veio parar em minhas mãos.)

Gislene Bosnich